A história da grande batalha da borracha na 2ª Guerra Mundial
A segunda grande Guerra Mundial, em fins de 1941, estava tomando rumos muito perigosos. Além de não conseguir conter a ofensiva alemã, os paises aliados viam o esforço de guerra consumir rapidamente seus estoques de matérias primas estratégicas. E nenhuma situação era mais preocupante do que a da borracha, cujas reservas estavam tão baixas que o governo americano se viu obrigado a tomar uma série de duras medidas internas. Toda a borracha disponível deveria ser utilizada somente pela máquina de guerra.
A entrada do Japão no conflito, a partir do ataque de Pearl Harbour, impôs o bloqueio definitivo dos produtores de borracha. Já no principio de 1942 o Japão controlava mais de 97% das regiões produtoras asiáticas, tornando crítica a disponibilidade da borracha para a indústria bélica dos aliados.
Por estranho que possa parecer foi essa seqüência de acontecimentos, ocorridos em sua maioria no hemisfério Norte ou do outro lado do Oceano Pacífico, que deu origem no Brasil à quase desconhecida Batalha da Borracha. Uma história de imensos sacrifícios para milhares de brasileiros mandados para os seringais amazônicos em nome da grande guerra que conflagrava o mundo civilizado. Um capítulo obscuro e sem glórias de nossa história que só permanece vivo na memória e no abandono dos últimos soldados da borracha.
Acordos de Washington
Quando a extensão da guerra ao Pacífico e ao Indico, interrompeu o fornecimento da borracha asiática as autoridades norte-americanas entraram em pânico. O presidente Roosevelt nomeou uma comissão para estudar a situação dos estoques de matérias-primas essenciais para a guerra. E os resultados obtidos por essa comissão foram alarmantes: “De todos os materiais críticos e estratégicos, a borracha é aquele que apresenta a maior ameaça à segurança de nossa nação e ao êxito da causa aliada (...) Consideramos a situação presente tão perigosa que, se não se tomarem medidas corretivas imediatas, este país entrará em colapso civil e militar. A crueza dos fatos é advertência que não pode ser ignorada” (Comissão Baruch).
As atenções do governo americano se voltaram então para a Amazônia, grande reservatório natural de borracha, com cerca de 300.000.000 de seringueiras prontas para a produção de 800.000 toneladas de borracha anuais, mais que o dobro das necessidades americanas. Entretanto, nessa época, só havia na região cerca de 35.000 seringueiros em atividade com uma produção de 16.000-17.000 toneladas na safra de 1940-41. Seriam necessários, pelo menos, mais 100.000 trabalhadores para reativar a produção amazônica e eleva-la ao nível de 70.000 toneladas anuais no menor espaço de tempo possível.
Para alcançar esse objetivo ocorreram intensas negociações entre autoridades brasileiras e norte-americanas que culminaram com a assinatura dos Acordos de Washington. Ficou acertado então que o governo americano passaria a investir fortemente no financiamento da produção de borracha amazônica, enquanto ao governo brasileiro caberia o encaminhamento de milhares de trabalhadores para os seringais, no que passou a ser tratado como um heróico esforço de guerra. Tudo ótimo enquanto as coisas estavam no papel, mas muito complicadas quando chegou a hora de pô-las em prática.
Fome com vontade de comer
Para o governo brasileiro era juntar a fome com a vontade de comer, literalmente. Somente em Fortaleza cerca de 30.000 flagelados da seca de 41-42 estavam disponíveis para serem enviados imediatamente para os seringais. Mesmo que de forma pouco organizada o DNI (Departamento Nacional de Imigração) ainda conseguiu enviar para a Amazônia, durante o ano de 1942, quase 15.000 pessoas, sendo a metade de homens aptos ao trabalho.
Eram os primeiros soldados da borracha. Simples retirantes que se amontoavam com suas famílias por todo o nordeste fugindo de uma seca que teimava em não se acabar. O que era, evidentemente, muito pouco diante das pretensões norte-americanas.
O problema era a baixa capacidade de transporte das empresas de navegação dos rios amazônicos e a pouca disponibilidade de alojamento para os trabalhadores em transito. Mesmo com o fornecimento de passagens do Loyd, com a abertura de créditos especiais pelo governo brasileiro e com a promessa do governo americano de pagar U$ 100 por cada novo trabalhador instalado no seringal as dificuldades eram imensas e pareciam intransponíveis. Isso só começou a ser solucionado em 1943 através do investimento maciço que os americanos fizeram na SNAPP (Serviço de Navegação e Administração dos Portos do Pará) e da construção de alojamentos espalhados ao longo do trajeto a ser percorrido pelos soldados da borracha.
Para acelerar ainda mais a transferência de trabalhadores para a Amazônia e aumentar significativamente sua produção de borracha os governos norte-americano e brasileiro encarregaram diversos órgãos da realização da “Batalha da Borracha”. Pelo lado americano estavam envolvidas a RDC (Rubber Development Corporation), a Board of Economic Warfare, a RRC (Rubber Reserve Company), a Reconstruccion Finance Corporation e a Defense Supllies Corporation. Enquanto que pelo lado brasileiro foram criados o SEMTA (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia), depois substituída pela CAETA (Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia), a SAVA (Superintendência do Abastecimento do Vale Amazônico) e o BCB (Banco de Crédito da Borracha), entre outros.
Esses novos órgãos, em muitos casos, se sobrepunham a outros já existentes como o DNI e não precisamos de muito esforço para imaginar o tamanho da confusão oficial que se tornou essa tal Batalha da Borracha.
Ilusão do paraíso
Em todas as regiões do Brasil aliciadores tratavam de convencer trabalhadores a se alistar como soldados da borracha para auxiliar na vitória aliada. Alistamento, recrutamento, voluntários, soldados, esforço de guerra, se tornaram termos comuns no cotidiano popular. A mobilização de trabalhadores para a Amazônia realizada pelo Estado Novo foi revestida por toda a força simbólica e coercitiva que os tempos de guerra possibilitavam.
No Nordeste, de onde deveria sair o maior numero de soldados, o SEMTA convocou padres, médicos e professores para o recrutamento de todos os homens aptos ao esforço de guerra que tinha que ser empreendido nas florestas amazônicas. O artista suíço Chabloz foi contratado para produzir material de divulgação acerca da “realidade” que os esperava. Nos cartazes coloridos os seringueiros apareciam recolhendo baldes de látex que escorria como água de grossas seringueiras. Todo o caminho que levava do sertão nordestino, seco e amarelo, ao paraíso verde e úmido da Amazônia estava retratado naqueles cartazes repletos de palavras fortes e otimistas. O bordão “Borracha para a Vitória” tornou-se o emblema da mobilização realizada por todo o nordeste.
Histórias de enriquecimento fácil circulavam de boca em boca. “Na Amazônia se junta dinheiro com rodo”. Os velhos mitos do Eldorado amazônico voltavam a ganhar força no imaginário popular. O paraíso perdido, a terra da fartura e da promissão, onde a floresta era sempre verde e a seca desconhecida. Os cartazes mostravam caminhões carregando toneladas de borracha colhidas com fartura pelos trabalhadores. Imagens coletadas por Chabloz nas plantações da Firestone na Malásia, sem nenhuma conexão com a realidade que esperava os trabalhadores nos seringais amazônicos. Mas, perder o que? Afinal de contas — espalhadas pelas esquinas, nas paredes das casas e nos bares — a colorida propaganda oficial garantia que todos os trabalhadores teriam passagem grátis e seriam protegidos pelo SEMTA.
Quando nem todas as promessas e quimeras funcionavam, sempre restava o bom e velho recrutamento forçado de jovens. A muitas famílias do sertão nordestino foram dadas somente duas opções: ou seus filhos partiam para os seringais como soldados da borracha ou então deveriam seguir para o front lutar contra os italianos e alemães. Muitos preferiram a Amazônia.
Caminhos da guerra
Ao chegar aos alojamentos organizados pelo SEMTA o trabalhador recebia um chapéu, um par de alparcatas, uma blusa de morim branco, uma calça de mescla azul, uma caneca, um talher, um prato, uma rede, cigarros, um salário de meio dólar por dia e a expectativa de logo embarcar para a Amazônia. Os navios do Loyd saiam dos portos nordestinos abarrotados de homens, mulheres e crianças de todas as partes do Brasil. Primeiro rumo ao Maranhão e depois para Belém, Manaus, Rio Branco e outras cidades menores onde as turmas de trabalhadores seriam entregues aos “patrões” (seringalistas) que deveriam conduzi-los até os seringais onde, finalmente, poderiam cumprir seu dever para com a Pátria.
Aparentemente tudo muito organizado. Pelo menos frente aos olhos dos americanos que estavam nos fornecendo centenas de embarcações e caminhões, toneladas de suprimentos e muito, muito, dinheiro. Tanto dinheiro que dava pra desperdiçar em mais propaganda, em erros administrativos que faziam uma pequena cidade do sertão nordestino ser inundada por um enorme carregamento de café solicitado não se sabe por quem, ou no sumiço de mais de 1.500 mulas entre São Paulo e o Acre.
Na verdade, o caminho até o eldorado amazônico era muito mais longo e difícil do que poderiam imaginar tanto americanos quanto soldados da borracha. A começar pelo medo do ataque dos submarinos alemães que se espalhava entre as famílias amontoadas a bordo dos navios do Loyd comboiados por caça-minas e aviões de guerra. Memórias marcadas por aqueles momentos em que era proibido acender fósforos ou mesmo falar. Tempos de medo que estavam só começando.
A partir do Maranhão não havia um fluxo organizado de encaminhamento de trabalhadores para os seringais. Freqüentemente era preciso esperar muito antes que as turmas tivessem oportunidade para seguir viagem. A maioria dos alojamentos que recebiam os imigrantes em transito eram verdadeiros campos de concentração onde as péssimas condições de alimentação e higiene acabavam com a saúde dos trabalhadores antes mesmo que fizessem o primeiro corte nas seringueiras.
Não que não houvesse comida. Havia, e muita. Mas era tão ruim, tão mal feita, que era comum ver as lixeiras dos alojamentos cheias enquanto as pessoas adoeciam com fome. Muitos alojamentos foram construídos em lugares infestados pela malária, febre amarela e icterícia. Surtos epidêmicos matavam dezenas de soldados da borracha e seus familiares nos pousos de Belém, Manaus e outros portos amazônicos. O atendimento médico inexistia longe das propagandas oficiais e os conflitos se espalhavam entre os soldados já quase derrotados.
A desordem era tanta que muitos abandonaram os alojamentos e passaram a perambular pelas ruas de Manaus e outras cidades buscando um modo de retornar a sua terra de origem, ou de pelo menos sobreviver. Outras tantas revoltas paralisaram os gaiolas em meio de viagem diante das alarmantes notícias sobre a vida nos seringais. Pequenos motins rapidamente abafados pelos funcionários da SNAPP ou da SAVA. Esse parecia ser então um caminho sem volta.
Soldados da floresta
Os que conseguiam efetivamente chegar aos seringais depois de três ou mais meses de viagem já sabiam que suas dificuldades estavam apenas começando. Os recém chegados eram tratados como “brabos”. Aqueles que ainda não sabem cortar seringa e cuja produção no primeiro ano é sempre muito pequena. Só a partir do segundo ano de trabalho o seringueiro era considerado “manso”. Mesmo assim, desde o momento em que era escolhido e embarcado para o seringal, o brabo já começava a acumular uma divida com o patrão.
Uma divida que crescia rapidamente porque tudo que recebia era cobrado. Mantimentos, ferramentas, tigelas, roupas, armas, munição, remédios, tudo enfim era anotado na sua conta corrente. Só no fim da safra a produção da borracha de cada seringueiro era abatida do valor de sua dívida. Mas o valor de sua produção era, quase sempre, inferior a quantia devida ao patrão. E não adiantava argumentar que o valor cobrado pelas mercadorias no barracão do seringalista era cinco ou mais vezes maior do que aquele praticado nas cidades, os seringueiros eram proibidos de vender ou comprar de outro lugar. Cedo os soldados da borracha descobriam que no seringal a palavra do patrão era a lei e a lógica daquela guerra.
Os financiadores americanos insistiam que não se deveriam repetir os abusos do sistema de aviamento que caracterizaram o primeiro ciclo da borracha. Na pratica, entretanto, o contrato de trabalho assinado entre seringalista e soldado da borracha quase nunca foi respeitado. A não ser para assegurar os direitos dos seringalistas. Como no caso da clausula que impedia o seringueiro de abandonar o seringal enquanto não saldasse sua divida com o patrão, o que tornava a maioria dos seringueiros verdadeiros prisioneiros de suas colocações de seringa.
Todas as tentativas de implantação de um novo regime de trabalho, como o fornecimento de suprimentos direto aos seringueiros, fracassaram diante da pressão e poderio das casas aviadoras e dos seringalistas que dominavam secularmente o processo da produção da borracha na Amazônia.
Guerra que não terminou
Mesmo com todos os problemas enfrentados (ou provocados) pelos órgãos encarregados da Batalha da Borracha cerca de 60.000 pessoas foram enviadas para os seringais amazônicos entre 1942 e 1945. Desse total quase a metade acabou morrendo em razão das péssimas condições de transporte, alojamento e alimentação durante a viagem. Como também pela absoluta falta de assistência médica, ou mesmo em função dos inúmeros problemas ou conflitos enfrentados nos seringais.
Ainda assim o crescimento da produção de borracha na Amazônia nesse período foi infinitamente menor do que o esperado. O que levou o governo norte-americano, já a partir de 1944, a transferir muitas de suas atribuições para órgãos brasileiros. E tão logo a Guerra Mundial chegou ao fim, no ano seguinte, os Estados Unidos se apressaram em cancelar todos os acordos referentes à produção de borracha amazônica. Afinal de contas, o acesso às regiões produtoras do sudeste asiático estava novamente aberto e o mercado internacional logo se normalizaria.
Era o fim da Batalha da Borracha, mas não da guerra travada pelos soldados dela. Muitos, imersos na solidão de suas colocações no interior da floresta, sequer foram avisados que a guerra tinha terminado, só vindo a descobrir isso anos depois. Alguns voltaram para suas regiões de origem como haviam partido, sem um tostão no bolso, ou pior, alquebrados e sem saúde. Outros conseguiram criar raízes na floresta e ali construir suas vidas. Poucos, muito poucos, conseguiram tirar algum proveito econômico dessa batalha incompreensível, aparentemente sem armas, sem tiros, mas com tantas vítimas.
Pelo menos uma coisa todos os soldados da borracha, sem exceção, receberam. O descaso do governo brasileiro, que os abandonou a própria sorte, apesar de todos os acordos e promessas feitos antes e durante a Batalha da Borracha. Só a partir da Constituição de 1988, mais de quarenta anos depois do fim da Guerra Mundial, os soldados da borracha passaram a receber uma pensão como reconhecimento pelo serviço prestado ao país. Uma pensão irrisória, dez vezes menor que a pensão recebida por aqueles que foram lutar na Itália. Por isso, ainda hoje, em diversas cidades brasileiras, no dia 1º de maio os soldados da borracha se reúnem para continuar a luta pelo reconhecimento de seus direitos.
Nem poderia ser diferente já que dos 20.000 brasileiros que lutaram na Itália morreram somente 454 combatentes. Enquanto que entre os quase 60.000 soldados da borracha cerca da metade morreu durante a guerra. Apesar disso, com a mesma intensidade com que os pracinhas foram recebidos triunfalmente pela sociedade brasileira, após o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, os soldados da borracha foram incompreensivelmente abandonados e esquecidos, afinal de contas eram todos igualmente soldados.
A segunda grande Guerra Mundial, em fins de 1941, estava tomando rumos muito perigosos. Além de não conseguir conter a ofensiva alemã, os paises aliados viam o esforço de guerra consumir rapidamente seus estoques de matérias primas estratégicas. E nenhuma situação era mais preocupante do que a da borracha, cujas reservas estavam tão baixas que o governo americano se viu obrigado a tomar uma série de duras medidas internas. Toda a borracha disponível deveria ser utilizada somente pela máquina de guerra.
A entrada do Japão no conflito, a partir do ataque de Pearl Harbour, impôs o bloqueio definitivo dos produtores de borracha. Já no principio de 1942 o Japão controlava mais de 97% das regiões produtoras asiáticas, tornando crítica a disponibilidade da borracha para a indústria bélica dos aliados.
Por estranho que possa parecer foi essa seqüência de acontecimentos, ocorridos em sua maioria no hemisfério Norte ou do outro lado do Oceano Pacífico, que deu origem no Brasil à quase desconhecida Batalha da Borracha. Uma história de imensos sacrifícios para milhares de brasileiros mandados para os seringais amazônicos em nome da grande guerra que conflagrava o mundo civilizado. Um capítulo obscuro e sem glórias de nossa história que só permanece vivo na memória e no abandono dos últimos soldados da borracha.
Acordos de Washington
Quando a extensão da guerra ao Pacífico e ao Indico, interrompeu o fornecimento da borracha asiática as autoridades norte-americanas entraram em pânico. O presidente Roosevelt nomeou uma comissão para estudar a situação dos estoques de matérias-primas essenciais para a guerra. E os resultados obtidos por essa comissão foram alarmantes: “De todos os materiais críticos e estratégicos, a borracha é aquele que apresenta a maior ameaça à segurança de nossa nação e ao êxito da causa aliada (...) Consideramos a situação presente tão perigosa que, se não se tomarem medidas corretivas imediatas, este país entrará em colapso civil e militar. A crueza dos fatos é advertência que não pode ser ignorada” (Comissão Baruch).
As atenções do governo americano se voltaram então para a Amazônia, grande reservatório natural de borracha, com cerca de 300.000.000 de seringueiras prontas para a produção de 800.000 toneladas de borracha anuais, mais que o dobro das necessidades americanas. Entretanto, nessa época, só havia na região cerca de 35.000 seringueiros em atividade com uma produção de 16.000-17.000 toneladas na safra de 1940-41. Seriam necessários, pelo menos, mais 100.000 trabalhadores para reativar a produção amazônica e eleva-la ao nível de 70.000 toneladas anuais no menor espaço de tempo possível.
Para alcançar esse objetivo ocorreram intensas negociações entre autoridades brasileiras e norte-americanas que culminaram com a assinatura dos Acordos de Washington. Ficou acertado então que o governo americano passaria a investir fortemente no financiamento da produção de borracha amazônica, enquanto ao governo brasileiro caberia o encaminhamento de milhares de trabalhadores para os seringais, no que passou a ser tratado como um heróico esforço de guerra. Tudo ótimo enquanto as coisas estavam no papel, mas muito complicadas quando chegou a hora de pô-las em prática.
Fome com vontade de comer
Para o governo brasileiro era juntar a fome com a vontade de comer, literalmente. Somente em Fortaleza cerca de 30.000 flagelados da seca de 41-42 estavam disponíveis para serem enviados imediatamente para os seringais. Mesmo que de forma pouco organizada o DNI (Departamento Nacional de Imigração) ainda conseguiu enviar para a Amazônia, durante o ano de 1942, quase 15.000 pessoas, sendo a metade de homens aptos ao trabalho.
Eram os primeiros soldados da borracha. Simples retirantes que se amontoavam com suas famílias por todo o nordeste fugindo de uma seca que teimava em não se acabar. O que era, evidentemente, muito pouco diante das pretensões norte-americanas.
O problema era a baixa capacidade de transporte das empresas de navegação dos rios amazônicos e a pouca disponibilidade de alojamento para os trabalhadores em transito. Mesmo com o fornecimento de passagens do Loyd, com a abertura de créditos especiais pelo governo brasileiro e com a promessa do governo americano de pagar U$ 100 por cada novo trabalhador instalado no seringal as dificuldades eram imensas e pareciam intransponíveis. Isso só começou a ser solucionado em 1943 através do investimento maciço que os americanos fizeram na SNAPP (Serviço de Navegação e Administração dos Portos do Pará) e da construção de alojamentos espalhados ao longo do trajeto a ser percorrido pelos soldados da borracha.
Para acelerar ainda mais a transferência de trabalhadores para a Amazônia e aumentar significativamente sua produção de borracha os governos norte-americano e brasileiro encarregaram diversos órgãos da realização da “Batalha da Borracha”. Pelo lado americano estavam envolvidas a RDC (Rubber Development Corporation), a Board of Economic Warfare, a RRC (Rubber Reserve Company), a Reconstruccion Finance Corporation e a Defense Supllies Corporation. Enquanto que pelo lado brasileiro foram criados o SEMTA (Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia), depois substituída pela CAETA (Comissão Administrativa de Encaminhamento de Trabalhadores para a Amazônia), a SAVA (Superintendência do Abastecimento do Vale Amazônico) e o BCB (Banco de Crédito da Borracha), entre outros.
Esses novos órgãos, em muitos casos, se sobrepunham a outros já existentes como o DNI e não precisamos de muito esforço para imaginar o tamanho da confusão oficial que se tornou essa tal Batalha da Borracha.
Ilusão do paraíso
Em todas as regiões do Brasil aliciadores tratavam de convencer trabalhadores a se alistar como soldados da borracha para auxiliar na vitória aliada. Alistamento, recrutamento, voluntários, soldados, esforço de guerra, se tornaram termos comuns no cotidiano popular. A mobilização de trabalhadores para a Amazônia realizada pelo Estado Novo foi revestida por toda a força simbólica e coercitiva que os tempos de guerra possibilitavam.
No Nordeste, de onde deveria sair o maior numero de soldados, o SEMTA convocou padres, médicos e professores para o recrutamento de todos os homens aptos ao esforço de guerra que tinha que ser empreendido nas florestas amazônicas. O artista suíço Chabloz foi contratado para produzir material de divulgação acerca da “realidade” que os esperava. Nos cartazes coloridos os seringueiros apareciam recolhendo baldes de látex que escorria como água de grossas seringueiras. Todo o caminho que levava do sertão nordestino, seco e amarelo, ao paraíso verde e úmido da Amazônia estava retratado naqueles cartazes repletos de palavras fortes e otimistas. O bordão “Borracha para a Vitória” tornou-se o emblema da mobilização realizada por todo o nordeste.
Histórias de enriquecimento fácil circulavam de boca em boca. “Na Amazônia se junta dinheiro com rodo”. Os velhos mitos do Eldorado amazônico voltavam a ganhar força no imaginário popular. O paraíso perdido, a terra da fartura e da promissão, onde a floresta era sempre verde e a seca desconhecida. Os cartazes mostravam caminhões carregando toneladas de borracha colhidas com fartura pelos trabalhadores. Imagens coletadas por Chabloz nas plantações da Firestone na Malásia, sem nenhuma conexão com a realidade que esperava os trabalhadores nos seringais amazônicos. Mas, perder o que? Afinal de contas — espalhadas pelas esquinas, nas paredes das casas e nos bares — a colorida propaganda oficial garantia que todos os trabalhadores teriam passagem grátis e seriam protegidos pelo SEMTA.
Quando nem todas as promessas e quimeras funcionavam, sempre restava o bom e velho recrutamento forçado de jovens. A muitas famílias do sertão nordestino foram dadas somente duas opções: ou seus filhos partiam para os seringais como soldados da borracha ou então deveriam seguir para o front lutar contra os italianos e alemães. Muitos preferiram a Amazônia.
Caminhos da guerra
Ao chegar aos alojamentos organizados pelo SEMTA o trabalhador recebia um chapéu, um par de alparcatas, uma blusa de morim branco, uma calça de mescla azul, uma caneca, um talher, um prato, uma rede, cigarros, um salário de meio dólar por dia e a expectativa de logo embarcar para a Amazônia. Os navios do Loyd saiam dos portos nordestinos abarrotados de homens, mulheres e crianças de todas as partes do Brasil. Primeiro rumo ao Maranhão e depois para Belém, Manaus, Rio Branco e outras cidades menores onde as turmas de trabalhadores seriam entregues aos “patrões” (seringalistas) que deveriam conduzi-los até os seringais onde, finalmente, poderiam cumprir seu dever para com a Pátria.
Aparentemente tudo muito organizado. Pelo menos frente aos olhos dos americanos que estavam nos fornecendo centenas de embarcações e caminhões, toneladas de suprimentos e muito, muito, dinheiro. Tanto dinheiro que dava pra desperdiçar em mais propaganda, em erros administrativos que faziam uma pequena cidade do sertão nordestino ser inundada por um enorme carregamento de café solicitado não se sabe por quem, ou no sumiço de mais de 1.500 mulas entre São Paulo e o Acre.
Na verdade, o caminho até o eldorado amazônico era muito mais longo e difícil do que poderiam imaginar tanto americanos quanto soldados da borracha. A começar pelo medo do ataque dos submarinos alemães que se espalhava entre as famílias amontoadas a bordo dos navios do Loyd comboiados por caça-minas e aviões de guerra. Memórias marcadas por aqueles momentos em que era proibido acender fósforos ou mesmo falar. Tempos de medo que estavam só começando.
A partir do Maranhão não havia um fluxo organizado de encaminhamento de trabalhadores para os seringais. Freqüentemente era preciso esperar muito antes que as turmas tivessem oportunidade para seguir viagem. A maioria dos alojamentos que recebiam os imigrantes em transito eram verdadeiros campos de concentração onde as péssimas condições de alimentação e higiene acabavam com a saúde dos trabalhadores antes mesmo que fizessem o primeiro corte nas seringueiras.
Não que não houvesse comida. Havia, e muita. Mas era tão ruim, tão mal feita, que era comum ver as lixeiras dos alojamentos cheias enquanto as pessoas adoeciam com fome. Muitos alojamentos foram construídos em lugares infestados pela malária, febre amarela e icterícia. Surtos epidêmicos matavam dezenas de soldados da borracha e seus familiares nos pousos de Belém, Manaus e outros portos amazônicos. O atendimento médico inexistia longe das propagandas oficiais e os conflitos se espalhavam entre os soldados já quase derrotados.
A desordem era tanta que muitos abandonaram os alojamentos e passaram a perambular pelas ruas de Manaus e outras cidades buscando um modo de retornar a sua terra de origem, ou de pelo menos sobreviver. Outras tantas revoltas paralisaram os gaiolas em meio de viagem diante das alarmantes notícias sobre a vida nos seringais. Pequenos motins rapidamente abafados pelos funcionários da SNAPP ou da SAVA. Esse parecia ser então um caminho sem volta.
Soldados da floresta
Os que conseguiam efetivamente chegar aos seringais depois de três ou mais meses de viagem já sabiam que suas dificuldades estavam apenas começando. Os recém chegados eram tratados como “brabos”. Aqueles que ainda não sabem cortar seringa e cuja produção no primeiro ano é sempre muito pequena. Só a partir do segundo ano de trabalho o seringueiro era considerado “manso”. Mesmo assim, desde o momento em que era escolhido e embarcado para o seringal, o brabo já começava a acumular uma divida com o patrão.
Uma divida que crescia rapidamente porque tudo que recebia era cobrado. Mantimentos, ferramentas, tigelas, roupas, armas, munição, remédios, tudo enfim era anotado na sua conta corrente. Só no fim da safra a produção da borracha de cada seringueiro era abatida do valor de sua dívida. Mas o valor de sua produção era, quase sempre, inferior a quantia devida ao patrão. E não adiantava argumentar que o valor cobrado pelas mercadorias no barracão do seringalista era cinco ou mais vezes maior do que aquele praticado nas cidades, os seringueiros eram proibidos de vender ou comprar de outro lugar. Cedo os soldados da borracha descobriam que no seringal a palavra do patrão era a lei e a lógica daquela guerra.
Os financiadores americanos insistiam que não se deveriam repetir os abusos do sistema de aviamento que caracterizaram o primeiro ciclo da borracha. Na pratica, entretanto, o contrato de trabalho assinado entre seringalista e soldado da borracha quase nunca foi respeitado. A não ser para assegurar os direitos dos seringalistas. Como no caso da clausula que impedia o seringueiro de abandonar o seringal enquanto não saldasse sua divida com o patrão, o que tornava a maioria dos seringueiros verdadeiros prisioneiros de suas colocações de seringa.
Todas as tentativas de implantação de um novo regime de trabalho, como o fornecimento de suprimentos direto aos seringueiros, fracassaram diante da pressão e poderio das casas aviadoras e dos seringalistas que dominavam secularmente o processo da produção da borracha na Amazônia.
Guerra que não terminou
Mesmo com todos os problemas enfrentados (ou provocados) pelos órgãos encarregados da Batalha da Borracha cerca de 60.000 pessoas foram enviadas para os seringais amazônicos entre 1942 e 1945. Desse total quase a metade acabou morrendo em razão das péssimas condições de transporte, alojamento e alimentação durante a viagem. Como também pela absoluta falta de assistência médica, ou mesmo em função dos inúmeros problemas ou conflitos enfrentados nos seringais.
Ainda assim o crescimento da produção de borracha na Amazônia nesse período foi infinitamente menor do que o esperado. O que levou o governo norte-americano, já a partir de 1944, a transferir muitas de suas atribuições para órgãos brasileiros. E tão logo a Guerra Mundial chegou ao fim, no ano seguinte, os Estados Unidos se apressaram em cancelar todos os acordos referentes à produção de borracha amazônica. Afinal de contas, o acesso às regiões produtoras do sudeste asiático estava novamente aberto e o mercado internacional logo se normalizaria.
Era o fim da Batalha da Borracha, mas não da guerra travada pelos soldados dela. Muitos, imersos na solidão de suas colocações no interior da floresta, sequer foram avisados que a guerra tinha terminado, só vindo a descobrir isso anos depois. Alguns voltaram para suas regiões de origem como haviam partido, sem um tostão no bolso, ou pior, alquebrados e sem saúde. Outros conseguiram criar raízes na floresta e ali construir suas vidas. Poucos, muito poucos, conseguiram tirar algum proveito econômico dessa batalha incompreensível, aparentemente sem armas, sem tiros, mas com tantas vítimas.
Pelo menos uma coisa todos os soldados da borracha, sem exceção, receberam. O descaso do governo brasileiro, que os abandonou a própria sorte, apesar de todos os acordos e promessas feitos antes e durante a Batalha da Borracha. Só a partir da Constituição de 1988, mais de quarenta anos depois do fim da Guerra Mundial, os soldados da borracha passaram a receber uma pensão como reconhecimento pelo serviço prestado ao país. Uma pensão irrisória, dez vezes menor que a pensão recebida por aqueles que foram lutar na Itália. Por isso, ainda hoje, em diversas cidades brasileiras, no dia 1º de maio os soldados da borracha se reúnem para continuar a luta pelo reconhecimento de seus direitos.
Nem poderia ser diferente já que dos 20.000 brasileiros que lutaram na Itália morreram somente 454 combatentes. Enquanto que entre os quase 60.000 soldados da borracha cerca da metade morreu durante a guerra. Apesar disso, com a mesma intensidade com que os pracinhas foram recebidos triunfalmente pela sociedade brasileira, após o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, os soldados da borracha foram incompreensivelmente abandonados e esquecidos, afinal de contas eram todos igualmente soldados.